Regime militar: violência, repressão e crise econômica
Os acontecimentos de 31 de março e de 1o de abril de 1964 marcaram a história do Brasil. Naquele contexto, a deposição do presidente João Goulart por um grupo militar, financiado por empresários nacionais e internacionais, e apoiado por parte da população, da imprensa e do clero, abriria as portas para mais de vinte anos de regime civil-militar no país.
A queda de Jango – que defendia as Reformas de Base, a Reforma Agrária e mantinha relações com os governos de Cuba e da China – foi acompanhada de uma intensa propaganda anticomunista que se expressava nos jornais, revistas, folhetos, rádios e pronunciamentos políticos. Em tempos de Guerra Fria, todos os mecanismos repressivos e de perseguição foram utilizados para minar a suposta “ameaça comunista” não só no Brasil, mas em toda América Latina.
Na prática, essa ameaça comunista era apenas um pretexto utilizado pelos Estados Unidos não só para justificar as arbitrariedades impostas aos seus países vizinhos, mas também para ampliar sua influência capitalista num mundo dividido ideológica e politicamente. Tal narrativa foi a base da conformação da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) que, segundo o historiador Enrique Serra Padrós, influenciou a formação e as ações militares em toda América Latina.
Em linhas gerais, a DSN criou a imagem do “inimigo interno”, do “subversivo” que deveria ser eliminado e combatido por ser portador de ideias e influências contrárias ao regime defendido pelos Estados Unidos. Essa leitura também associava de forma vulgar e superficial o comunismo à tirania, à opressão e à barbárie. “Outra associação identificou as organizações revolucionárias e os partidos políticos de esquerda com o fenômeno terrorista.”, explica Padrós em seu artigo “Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-americanas”.
Os primeiros meses de regime militar no Brasil foram de intenso desmonte do Estado democrático de direito: fechamento de partidos, cassação de mandatos, perseguição a militantes de esquerda e vigilância de espaços de atuação, como os sindicatos, agremiações e centro acadêmicos de universidades. A derrubada da Constituição configurou um período marcado pelo Estado de exceção. Nele, não havia direito ao voto, à greve, à representação política direta, à organização sindical ou direitos sociais garantidos.
Ao longo dos anos, as práticas já impostas em 1964 passaram não só por um incremento da repressão e da violência, como também por um respaldo legal. Os chamados Atos Institucionais davam aos governos militares capacidade cada vez mais ampla de atuação. O Ato Institucional n. 5 (AI-5) de 1968, por exemplo, concedia ao Presidente da República plena autonomia para governar o país sem as limitações previstas anteriormente na Constituição. Sendo assim, o presidente poderia atuar de acordo com os interesses dos grupos que financiavam seu regime e de forma arbitrária sem ser impedido. Nesse período, as atividades do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores também foram suspensas.
O Art. 4 do AI-5 ainda previa a suspensão do direito de votar e ser votado nas eleições sindicais, proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; liberdade vigiada; além de determinações que endureciam a censura.
Neste contexto, o país viveu também a radicalização da esquerda. Diversas foram as organizações que optaram pela luta armada. Dentre elas, podemos citar a Guerrilha do Araguaia, a Var-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) e a Ação Libertadora Nacional (ALN).
Não tiveram, no entanto, um destino promissor, apesar de atuarem pressionando o regime e expondo suas deficiências. Com a Doutrina de Segurança Nacional sendo aplicada através dos sistemas de vigilância e da atuação de organismos de repressão como o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), o SNI (Serviço Nacional de Informações) e os operativos das Forças Armadas, a repressão se sofisticou, e os militantes de esquerda foram caindo pouco a pouco.
Exercitando a memória, relembremos dois casos desta repressão. O primeiro é a morte de Carlos Marighella, baiano, nascido em Salvador, que foi militante do Partido Comunista Brasileiro, pelo qual foi deputado. Sua trajetória, no entanto, foi encerrada em 4 de novembro de 1969, quando uma emboscada organizada por agentes de segurança do Estado resultou no seu assassinato.
Fundador do grupo armado Ação Libertadora Nacional (ALN), Marighella atuava na clandestinidade ao lado de seus companheiros e contra as repressões e arbitrariedades impostas pelo regime militar. Em setembro de 1969, a ALN participou do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em uma ação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em troca da liberação do embaixador, pedia-se a libertação de presos políticos o exílio dos mesmos em outros países.
Outro caso bastante emblemático sobre esse período é o de Vladimir Herzog. Jornalista da TV Cultura, o também militante do Partido Comunista Brasileiro foi chamado para depor no DOI-CODI em 24 de outubro de 1975. Vladimir foi preso com mais dois jornalistas, George Duque Estrada e Rodolfo Oswaldo Konder, e morreu em decorrência das torturas que sofreu.
No dia seguinte à sua morte, a grande imprensa noticiou que o jornalista da TV Cultura havia se suicidado nas instalações do DOI-CODI. Uma foto na qual ele aparece com um cinto em volta do pescoço foi amplamente difundida pelos veículos de comunicação. Foi preciso o final do regime militar para que se soubesse que a imagem tinha sido manipulada e que Herzog fora assassinado. Entre os companheiros de Herzog e os que lutaram contra a ditadura sabia-se, no entanto, que a manipulação da imagem era apenas uma das estratégias do governo contra a militância de esquerda.
Marighella e Herzog são dois dos inúmeros casos de assassinato, tortura e desaparecimento forçado registrados durante o período militar. A verdade é que a maioria dos militantes que lutaram contra o regime militar foi perseguida, presa, torturada, condenada, assassinada. Vale lembrar que a radicalização da luta contra a ditadura se deu, em grande medida, em função de inexistência de espaços mínimos de representação e de liberdade de expressão.
A Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012, buscou reconstruir a história de muitos casos ainda não esclarecidos. Além da CNV, Comissões Estaduais também trabalharam nos últimos anos para esclarecer esse passado de autoritarismo e repressão.
Durante uma de suas audiências em 2014, a CNV declarou que conseguiu fazer um levantamento sobre as operações que eram realizadas na chamada “Casa da Morte de Petrópolis”, Centro de Informações do Exército, que funcionou no início dos anos 1970 e para o qual foram levados militantes perseguidos e presos. Os testemunhos dão conta de que por essa casa passaram muitos militantes que ali foram assassinados e posteriormente desaparecidos por militares.
Na ocasião, o coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, que foi chamado para depor na Comissão, contou em detalhes como o corpo dos presos era mutilado para que eles não fossem identificados por seus familiares. O coronel afirmou ter desaparecido com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva. “Quantos morreram?”, perguntou a Comissão. “Tantos quanto foram necessários”, declarou na época Malhães.
O regime militar acabou em 1985, apesar de que a nova Constituição só foi promulgada em 1988 e que as eleições diretas só aconteceram em 1989. Todo o processo de transição à democracia envolveu inúmeras disputas políticas e pressões de movimentos como os pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” do Comitê Brasileiro pela Anistia do final da década de 1970.
Na prática, porém, a transição foi um processo pactuado. A chamada abertura “lenta, gradual e segura” iniciada ainda no governo de Ernesto Geisel, da década de 1970, envolveu concessões e negociações entre o setor militar e os progressistas que, naquele momento, representavam o interesse dos que pediam o fim do regime.
As punições para os crimes cometidos pelos agentes da ditadura também continuaram sem acontecer. A Lei da Anistia de 1979, considerada por juristas como Celso Lafer uma “auto anistia” dos militares, impede que processos jurídicos sejam levados a cabo para investigar as acusações que recaem sobre membros das Forças Armadas e dos sistemas de vigilância do regime militar.
Em seu artigo “Justiça, História e Memória: reflexões sobre a Comissão da Verdade”, Lafer acredita que a Lei da Anistia foi responsável por impor um esquecimento das atrocidades cometidas pelo regime. O processo de abertura política iniciado no fim do regime não foi, como já citado acima, uma ruptura com as antigas bases políticas. Por outro lado, configurou-se como uma reforma gradualista que não impediu que antigos militares continuassem atuando, mesmo após o fim da ditadura, em questões fundamentais da nossa sociedade.
O período militar também deixou marcas na economia. Ao contrário da memória equivocada de boa parte da população brasileira que insiste em crer no “milagre econômico”, a ditadura resultou num aumento expressivo da inflação que, em 1983, chegou a ser de 239%. Somou-se a isso um endividamento externo de quase U$100 bilhões de dólares no final do regime. Durante o regime militar também houve a opção por abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro, o que questiona o suposto discurso militar de defesa da “soberania e dos interesses nacionais”. Investigações históricas também comprovam a extensa prática de corrupção e lavagem de dinheiro entre militares e financiadores – nacionais e estrangeiros – que aportaram economicamente as arbitrariedades e operações repressivas do regime.
Em grande medida, a falta de discussão sobre as atrocidades cometidas pelos militares e inexistência da responsabilização desse setor pelas mortes, perseguições e torturas cometidos durante a ditadura militar é uma das causas para a visão equivocada de que este foi um período de prosperidade para o país.
As fontes históricas, os depoimentos e a documentação produzida pelos aparatos repressivos revelam, por sua vez, uma sociedade marcada pela perseguição, pela ameaça, pela privação dos direitos fundamentais e pela falta da liberdade política e de expressão.
Por isso, o atual pedido de intervenção militar por parte dos caminhoneiros não tem razão de existir! Se vivêssemos um cenário parecido com aquele que configurou a vida nacional entre 1964 e 1985, os caminhoneiros jamais seriam permitidos de ocupar o espaço público e estabelecer suas justas reivindicações como fazem agora. Pedir por intervenção militar, é questionar a democracia, é pedir por um tipo de governo que pode suprimir o direito de voto e de greve. Em outras palavras, é atuar contra o próprio movimento.
Além disso, a atual ameaça de Michel Temer de uma possível utilização do exército para fazer com que os caminhoneiros terminem a sua paralisação é mais uma das provas de que as Forças Armadas são um aparato institucional de prevenção e repressão.
Sendo assim, nós do Chico da Boleia acreditamos que é necessário lutar pelo fortalecimento das nossas instituições democráticas, em nome da defesa da Constituição brasileira e pela representatividade política dos setores sociais e dos interesses da categoria.
Nessa tarefa, faz-se imprescindível discutirmos as arbitrariedades, incoerências e violência que configuraram o regime militar brasileiro. Conhecer o passado é sempre uma arma importante para atuarmos no presente e refletirmos sobre o futuro que queremos construir.
Leia mais sobre o assunto:
TELES, Edson. “Democracia de efeito moral”. Artigo disponível no link: http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/edson-teles/
ARAÚJO, Maria Paula [et ali]. Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e testemunho. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012. O livro pode ser baixado através do link: http://www.historia.ufrj.br/pdfs/2013/livro_ditadura_militar.pdf
Documentário: “Hércules 56”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xxPNQfNpkOo
Filme: “Batismo de Sangue” (2007), direção de Helvécio Ratton.
Larissa Jacheta Riberti é doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e colabora com o jornal Chico da Boleia desde 2012.
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