Uma Pharmacia que agitava a vida política da cidade. Imagem cedida por Roberto Graça
O “PH” ainda mantido no nome é apenas um detalhe que remete a verdadeiras raridades da farmacologia. Entre os mais de 4 mil itens do acervo da Pharmacia Popular, a mais antiga do Brasil, estão desde ânforas de cristal francês, relógios do século passado (ainda em funcionamento!) e até rótulos pintados com pó de ouro. Preciosidades na mira do forro de madeira do teto, que ameaça desabar em meio a um impasse entre o poder público e o herdeiro do imóvel.
Inaugurada em 1830 no município de Bananal, no extremo leste de São Paulo, a Pharmacia Popular funcionou plenamente até 2010. Grande parte da conservação se deve ao zelo de Plínio Graça, que herdou o negócio do seu pai, em 1956. Sem incentivo, fez muitas dívidas tentando preservar o prédio – que em 1997, serviu até de locação para as gravações da minissérie “Dona Flor e seus dois maridos”, da Rede Globo. A última tentativa de manter o espaço foi transformá-lo em museu, há dois anos, cobrando entrada de R$ 3.
A um jornal local, meses antes de morrer, Plínio contou que “o movimento na drogaria era fraco, porém eram constantes as visitas para conhecer o acervo histórico. Para manter as características originais, abrimos mão da modernização e isso influenciou o movimento”. Plínio disse ainda que encaminhara à prefeitura e ao governo estadual diversos pedidos de ajuda para conservar e manter o acervo, mas nunca foi atendido.
Missão assumida agora por seu filho, Roberto Graça, depois da morte de Plínio em junho do ano passado. Devido ao abalo nas estruturas de madeira que mantêm o forro do teto, Roberto decidiu fechar o museu e retomar os pedidos de ajuda junto ao poder público.
“Já procurei o Iphan, o Conselho Federal de Farmácia, o Conselho Estadual de Farmácia, e tantos outros órgãos. Recentemente, tive um encontro com o secretário estadual de Cultura de São Paulo, Andrea Matarazzo, mas não recebi nenhuma resposta”.
Máquina registradora do início do século passado. Imagem cedida por Roberto Graça
Dono rejeita tombamento
A Secretaria Estadual de Cultura explicou que, por se tratar de um imóvel particular, a recuperação e restauro são de responsabilidade de seus proprietários. Porém, em alguns casos especiais – como obras realizadas em São Luiz de Paraitinga –, “foram disponibilizadas verbas para a reconstrução do núcleo tombado”. A secretaria encaminhou o processo para a consultoria jurídica do órgão a fim de conseguir autorização para restaurar.
O imóvel é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Recentemente, técnicos da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH) estiveram no local e sugeriram tombar também o acervo, o que, segundo a secretaria, facilitaria o investimento de recursos públicos. A iniciativa, porém, foi negada por Roberto – que não poderia nem reformar nem vender o imóvel, ideia que agora vem pensando em pôr em prática.
“Se eu deixar tombarem o acervo, não vou poder tirar nada do local, nem vender, nem fazer mais nada. Meu desejo é vender tudo, do jeito como está – prédio e objetos – para alguém que tenha condições de cuidar. Já me ofereceram muito, mas muito dinheiro por alguns itens avulsos. Mas não quero fazer isso, pois meu pai dedicou sua vida a cuidar da Pharmacia com muito carinho. Sou restaurador, e sei que isso iria descaracterizar tudo. Mas ironicamente, e infelizmente, não tenho condições de manter meu próprio acervo”.
Nos fundos, laboratório onde se fabricava medicamentos. Imagem cedida por Roberto Graça
Pharmacia também era o ‘senadinho’ da cidade
Na entrada do local, o visitante pisa em raros ladrilhos franceses até o balcão em pinho-de-riga. A máquina registradora norte-americana ainda é do século passado. Há, ainda, diversos aparelhos de manipulação, balanças, móveis, armários e um busto de Hipócrates, pai da medicina.
Sem contar canecas de porcelana chinesa, usadas para medir líquidos, e vidros com tinturas, óleos e pós que serviam para fabricar artesanalmente os medicamentos. No século XIX, como não havia remédios industrializados, os boticários eram responsáveis pela produção. Como também não havia muitos médicos, eles acabavam sendo responsáveis por analisar pacientes, fazer as receitas e, no laboratório – que funcionava nos fundos da loja –, fabricar os medicamentos.
Ao notar essa carência na Bananal de 1830, o francês Tourin Domingos Mosnier foi obrigado a mudar seus planos. Ele chegou à cidade e logo comprou uma fazenda, disposto a se tornar um barão do café, mas acabou voltando às origens de boticário. Assim nascia a Pharmacia Imperial, da qual foi dono durante 30 anos.
Após sua morte, o coronel Valeriano José da Costa assumiu o negócio. Nunca imaginaria que aquele balcão de atendimento movimentaria a cena política da cidade: enquanto aguardavam a confecção dos medicamentos, os fregueses discutiam os rumos da política local sentados nos bancos de madeira próximos à porta de entrada. O espaço acabou sendo chamado de “senadinho”, como é conhecido até hoje.
Acontece que, em 15 de novembro de 1889, o “senadinho” voltou-se contra Valeriano. Nesse dia surgia a República Velha, e republicanos bananenses concluíram que a Pharmacia Imperial deveria mudar de nome –
Refratários mostram como se produziam medicamentos no Brasil do século XIX. Imagem cedida por Roberto Graça
por bem ou por mal. O popular, então, foi incorporado para anunciar aqueles velhos novos tempos.
Depois disso, o “senadinho” foi definitivamente incluído na história política da cidade. Com a morte de Valeriano, em 1918, a Pharmacia passou para as mãos do coronel Graça, que a doou ao seu filho mais velho, Ernani Graça, recém-formado em ciências farmacêuticas. Ernani tornou-se duas vezes prefeito da cidade, na década de 30, e a história se repetiu: com sua morte, o filho Plínio Graça assumiu a Pharmacia e também foi prefeito duas vezes. Agora está nas mãos de Roberto – e do poder público, afinal – manter a herança não só de duas gerações da família Graça, mas de um patrimônio brasileiro.
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